HC 89.090*
Trata-se de habeas corpus impetrado em face de decisão proferida pela Sexta Turma
do Superior Tribunal de Justiça – STJ. Eis o teor da ementa desse julgado:
“Penal e processual. Habeas corpus. Tráfico internacional de entorpecente. Crime
hediondo. ‘Operação Caravelas’. Organização criminosa. Elevado número de
crimes e de acusados. Fortes indícios de liderança do paciente. Excessiva
quantidade de entorpecente. Prisão preventiva. Suficiente fundamentação. Garantia
da aplicação da lei penal e da ordem pública. Requisitos do art. 312 do CPP
demonstrados. Ausência de constrangimento ilegal. Ordem denegada.
A prisão preventiva é medida excepcional, cabível diante de prova da existência de
crime e indícios suficientes de autoria, para garantir a ordem pública, por
conveniência da instrução criminal e para assegurar a aplicação da lei penal.
Paciente apontado como ‘2º homem’ dentro da organização, que utiliza nome falso,
possuidor de documentos falsos, detentor de grande patrimônio e indícios fortes de
seu envolvimento no tráfico internacional.
Decreto fundamentado sobretudo na justificativa da medida para assegurar a
aplicação da lei penal e garantir a ordem pública. Requisitos do art. 312 do CPP
demonstrados. Inexistência de constrangimento ilegal.
Habeas Corpus denegado.”
O impetrante teve a prisão em flagrante transformada em prisão preventiva pelo juiz
da 11ª vara federal de Goiás. Alegou constrangimento ilegal tendo em vista os seguintes fatores: a)
falta de fundamentação no decreto de prisão preventiva, uma vez que é “especulativo e totalmente
sem base legal” e as justificativas apontadas no decreto prisional encontram-se “sem lastro na lei e
sem fundamentação vinculada”; e b) excesso de prazo na instrução criminal.
O julgamento do writ recebeu a seguinte Ementa:
EMENTA: Habeas corpus. Fundamentação do decreto de prisão preventiva. Custódia cautelar lastreada na garantia da ordem pública e para assegurar a aplicação da lei penal (CPP, art. 312). Excesso de prazo. Não-configuração. Contribuição da defesa. Processo complexo. Ordem indeferida.
1. Crimes dos arts. 12 c/c 18, I, e 14, da Lei nº 6.368/1976 e 304 do Código Penal. A impetração alega: i) ausência de fundamentação do decreto de prisão preventiva; e ii) excesso de prazo na instrução criminal.
2. Na espécie, a decretação da preventiva lastreou-se nos fundamentos da garantia da ordem pública e da aplicação da lei penal, nos termos do art. 312 do CPP.
3. Quanto ao requisito da garantia da ordem pública, em linhas gerais e sem qualquer pretensão de exaurir todas as possibilidades normativas de sua aplicação judicial, destaco as seguintes circunstâncias principais:
i) a necessidade de resguardar a integridade física do próprio paciente ou dos demais cidadãos; ii) o
imperativo de impedir a reiteração das práticas criminosas, desde que tal objetivo esteja lastreado em elementos concretos expostos fundamentadamente no decreto de custódia cautelar; e iii) para assegurar a credibilidade das instituições públicas, em especial do Poder Judiciário, quanto à visibilidade e transparência de políticas públicas de persecução criminal e desde que diretamente relacionadas com a adoção tempestiva de medidas adequadas e eficazes associadas à base empírica concreta que tenha ensejado a custódia cautelar. Precedentes: HC nº 82.149/SC, 1ª Turma, unânime, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ de 13.12.2002; HC nº 82.684/SP, 2ª Turma, unânime, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ de 1º.08.2003; HC nº 83.157/MT, Pleno, unânime, rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 05.09.2003; e HC nº 84.680/PA, 1ª Turma, unânime, Rel. Min. Carlos Britto, DJ de 15.04.2005.
4. O Juiz de 1º grau apresentou elementos concretos suficientes para respaldar a regularidade do decreto cautelar: a função de “direção” desempenhada pelo paciente na organização (o paciente é considerado o “2º homem dentro da organização”); a ramificação das atividades criminosas em diversas unidades da federação; e a alta probabilidade de reiteração delituosa considerando-se a potencialidade da utilização do meio sistematicamente empregado pela quadrilha, a saber, o uso de artifícios para camuflar o transporte de entorpecentes no interior de cortes de carne destinada à exportação.
5. Quanto à alegação de excesso de prazo, constata-se a existência de elementos que sinalizam para a complexidade da causa (elevado número de crimes e de acusados). Em princípio, desde que devidamente fundamentada e atendido o parâmetro da razoabilidade, admite-se a excepcional prorrogação de mais de 81 dias para o término de instruções criminais de caráter complexo. Precedentes: HC nº 71.610/DF, Pleno, Unânime, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 30.03.2001; HC nº 82.138/SC, 2ª Turma, Unânime, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ de 14.11.2002; HC nº 81.905/PE, 1ª Turma, Maioria, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ de 16.05.2003; HC nº 85.679/PE, 1ª Turma, maioria, Rel. Min. Carlos Britto, DJ de 31.03.2006; HC nº 86.577/ES, Rel. Min. Ricardo Lewandowisk, 1ª Turma, maioria, julgado em 12.09.2006; e HC nº 88.905/GO, de minha relatoria, 2ª Turma, unânime, DJ de 13.10.2006.
6. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem deferido a ordem de habeas corpus somente em hipóteses excepcionais, nas quais a mora processual: i) seja decorrência exclusiva de diligências suscitadas pela atuação da acusação (cf: HC nº 85.400/PE, Rel. Min. Eros Grau, 1ª Turma, unânime, DJ de 11.03.2005; e HC nº 89.196/BA, Rel. Min. Ricardo Lewandowisk, 1ª Turma, maioria, julgado em 03.10.2006); ii) resulte da inércia do próprio aparato judicial em atendimento ao princípio da razoável duração do processo, nos termos do art. 5º, LXXVIII (cf. HC nº 85.237/DF, Pleno, unânime, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 29.04.2005; HC nº 85.068/RJ, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 1ª Turma, unânime, DJ de 03.06.2005; HC nº 86.346/SP, Rel. Min. Joaquim Barbosa, 2ª Turma, unânime, julgado em 18.04.2006; HC nº 87.910/SP, Rel. Min. Eros Grau, decisão monocrática, DJ de 25.04.2006; HC nº 86.850/PA, Rel. Min. Joaquim Barbosa, 2ª Turma, unânime, julgado em 16.05.2006; e HC nº 87.164/RJ, de minha relatoria, 2ª Turma, unânime, DJ de 29.09.2006); e, por fim, iii) seja incompatível com o princípio da razoabilidade (cf. HC nº 84.931/CE, Rel. Min. Cezar Peluso, 1ª Turma, unânime, DJ de 16.12.2005), ou, quando o excesso de prazo seja gritante (cf. HC nº 81.149/RJ, Rel. Min. Ilmar Galvão, 1ª Turma, unânime, DJ de 05.04.2002; RHC nº 83.177/PI, Rel. Min. Nelson Jobim, 2ª Turma, unânime, DJ de 19.03.2004; HC nº 84.095/GO, Rel. Min. Joaquim Barbosa, 2ª Turma, unânime, DJ de 16.12.2005; e HC nº 87.913/PI, Rel. Min. Carmen Lúcia,
1ª Turma, unânime, julgado em 05.09.2006). 7. Dos documentos acostados aos autos, verifica-se também haver contribuição da defesa para a demora processual, não se configurando a ilegalidade alegada por excesso de prazo, por não haver mora injustificada. Precedentes: HC nº 86.947/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, decisão monocrática, DJ de 26.10.2005; HC nº 86.618/MT, 2ª Turma, unânime, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ de 28.10.2005; HC nº 85.298/SP, 1ª Turma, maioria, Rel. Min. Marco Aurélio, Rel. p/ acórdão Min. Carlos Britto, DJ de 04.11.2005; HC nº 86.789/SP, de minha relatoria, 2ª Turma, unânime, DJ de 24.03.2006; HC nº 88.229/SE, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, 1ª Turma, maioria, julgado em 10.10.2006; e HC nº 88.905/GO, de minha relatoria, 2ª Turma, unânime, DJ de 13.10.2006.
8. Decreto de prisão preventiva devidamente fundamentado, nos termos do art. 312 do CPP e art. 93, IX, da CF. Existência de razões suficientes para a manutenção da prisão preventiva.
9. Ordem indeferida.
V O T O
O parecer do Ministério Público Federal, da lavra do Subprocurador-Geral da República, Dr. Cláudio Lemos Fonteles, é pelo indeferimento do writ, nos seguintes termos:
“7. Depreende-se dos autos que o paciente, juntamente com outras onze pessoas, foi denunciado pelo Ministério Público Federal, em razão de investigações que a Polícia Federal iniciou em virtude de informações prestadas pela Polícia Judiciária Portuguesa, segundo as quais os acusados seriam membros de extensa e complexa estrutura criminosa liderada por Antônio dos Santos Damaso, a qual foi desenvolvida para operar no ramo do tráfico internacional de entorpecentes, associação criminosa, lavagem de dinheiro, falsidade documental, falsidade ideológica, sonegação fiscal e outros crimes contra a ordem tributária. As investigações culminaram na apreensão de 1,6 tonelada de cocaína ocultada em carne bovina (doc. 2 – fls. 46/66).
10. O MM. Juiz da 5ª Vara Federal da Seção Judiciária do Estado de Goiás ressalta que JOSÉ ANTÔNIO DE PALINHOS JORGE PEREIRA é considerado o ‘o 2º homem dentro da organização’. De se ler:
‘Apesar de ser Damaso quem, aparentemente, detém o poder de comando das operações ilícitas sob investigação, é também de grande importância participação dos irmãos JOSÉ ANTÔNIO DE PALINHOS JORGE PEREIRA e ANTÔNIO PALINHOS JORGE PEREIRA.
JOSÉ ANTÔNIO DE PALINHOS JORGE PEREIRA é considerado o ‘2º homem’ dentro da organização. Trata-se de empresário de nacionalidade portuguesa, residente no Brasil, proprietário de vasto patrimônio, que inclui veículos importados, residências de luxo e diversas empresas.’ (fls. 148).
11. Conforme expõe o il. colega em sua manifestação de fls. 210/219:
‘O conceito de ordem pública não se limita a prevenir a reprodução de fatos criminosos, mas também a acautelar o meio social e a própria credibilidade da justiça em face da gravidade do crime e de sua repercussão. A conveniência da medida deve ser regulada pela sensibilidade do juiz à reação
do meio ambiente à prática delituosa.
No caso dos autos, a medida mostra-se mais do que conveniente, uma vez se trata de fatos envolvendo uma organização criminosa complexa e ramificada no Brasil e em países da Europa, abarcando várias pessoas que atacavam de formas diferentes em várias funções escusas, todas a fim de se praticarem crimes contra o sistema financeiro nacional, contra a ordem tributária e crimes de tráfico internacional de entorpecente. No caso do último crime, a operação culminou em uma das maiores apreensões já realizadas no Brasil, ocasião em que foi encontrada 1,6 toneladas de cocaína escondida em carne bovina congelada.
Ademais, pelo que se depreende dos documentos que baseavam o decreto prisional, há indícios de que o paciente integrava a mencionada organização criminosa com posições de liderança, tendo inclusive participado da compra de imóveis de valores vultosos em negociações que indicam ocultação de bens e crimes de lavagem de dinheiro, bem como contratações com doleiros e outras
operações relacionadas ao tráfico de entorpecentes.
Nesse contexto, embora o conceito de 'garantia de ordem pública' seja subjetivo, é legítimo o entendimento segundo o qual a prisão preventiva baseada nesse fundamento tenha por justificativas a instabilidade no meio social e os enormes prejuízos não só materiais, mas também institucionais causados por ações delituosas desse porte e complexidade. Assim, não há como se negar que a paz pública esteja ameaçada caso não sejam tomadas as medidas segregacionais necessárias para dissipar a atuação dos membros da organização.’ (fls. 212/214).
12. No tocante ao excesso de prazo, vejo que não se caracteriza o constrangimento ilegal sustentado pela defesa, à vista da complexidade do processo, a envolver vários acusados, muitas testemunhas residentes em lugares distintos, entre outras peculiaridades.
13. Além disso, conforme consta das informações de fls. 45/53, ‘os acusados, inclusive ora paciente, são os únicos responsáveis pela demora processual, em prejuízo à tão desejada celeridade e duração razoável do processo.’
14. Prossegue o MM. Juiz Federal Gilton Batista Brito: ‘Oportuno ainda asseverar o esforço deste Juízo em conferir celeridade ao feito, como o deslocamento de vários servidores para realizar longas audiências e diversas diligências provocadas pela defesa, em razão da complexidade da ação penal, que envolve delito transfronteiriço, e gerou, até agora, quatorze volumes de autos principais e onze
volumes de apensos até o presente momento, sendo digno de nota o elevado número de acusados.’ (fls. 52/3).
15. Diante das informações prestadas, verifica-se que os autos estão aguardando cumprimento de devolução de Cartas Precatórias, expedidas para inquirição de testemunhas arroladas pelas defesas dos acusados, portanto, segundo firme jurisprudência dessa Suprema Corte ‘não se caracteriza o excesso de prazo quando o processo está na fase da oitiva das testemunhas da defesa.’ (HC 86.329/PA, Rel. Min. Carlos Britto, DJ 5.5.2006, p. 00018).
16. Pelo indeferimento do pleito.” (fls. 57-65).
O Tribunal Regional Federal da 1ª Região, por unanimidade, denegou a ordem de habeas corpus impetrada em favor do paciente em 30 de janeiro de 2006. Transcrevo trechos do acórdão, verbis:
“Da leitura dos autos e, sobretudo, da decisão judicial que determinou a busca
e apreensão (fls. 132/33/57), proferida pela autoridade judiciária federal do Goiás,
assim está exposta a conduta do paciente:
‘1.b) JOSÉ ANTÔNIO DE PALINHOS JORGE PEREIRA OU GEORGE
COHEN.
Apesar de ser DAMASO quem, aparentemente, detém o poder de comando das operações ilícitas sob investigação, é também de grande importância a participação dos irmãos JOSÉ ANTÔNIO DE PALINHOS JORGE PEREIRA E ANTÔNIO PALINHOS JORGE PEREIRA.
JOSÉ ANTÔNIO DE PALINHOS JORGE PEREIRA é considerado o ‘2o homem’ dentro da organização. Trata-se de empresário de nacionalidade portuguesa, residente no Brasil, proprietário de vasto patrimônio, que inclui veículos importados, residências de luxo e diversas empresas.
Não raro, utiliza-se do nome falso GEORGE COHEN, com o qual abriu pelo menos duas empresas: Torres Vedras Consultoria e Participação Ltda. e Lakenosso Bar e Restaurante Ltda. Possui documentos falsos com os seguintes nomes: JOSÉ ANTÔNIO PALINHOS JORGE PEREIRA COHEN, GEORGE MANOEL DE PARANHOS COHEN, JOSÉ DE PALINHOS JORGE PEREIRA
e ANTÔNIO PALINHOS JORGE PEREIRA.
JOSÉ ANTÔNIO DE PALINHOS JORGE PEREIRA mantém contato direto com DAMASO, via telefone e também em reuniões. Sua ex-mulher, SANDRA TOLPIAKOW, com quem tem dois filhos
menores, BÁRBARA e DANIEL, também está sob investigação. Descobriu-se que SANDRA atua como ‘testa-de-ferro’ de seu ex-marido, uma vez que mantém em seu nome redes de restaurantes que, na realidade, pertencem a ele.
Tudo indica que SANDRA não aufere lucros desses negócios.
JOSÉ ANTÔNIO PALINHOS também mantém, com muita freqüência, contato direto com seu irmão ANTÔNIO PALINHOS, igualmente de nacionalidade portuguesa e detentor de grande patrimônio. Ambos se utilizam de códigos em conversações telefônicas, o que reforça a idéia de que evitam
expor-se na tentativa de burlar eventual trabalho de investigação.
(...)
Outra gravação de conversa telefônica de JOSÉ ANTÔNIO PALINHOS demonstra negociação de compra com ‘bucho’ e filé ‘mignon’, isso imediatamente após reunião entre ele e DAMASO para acertarem detalhes da participação de cada um antes da remessa de droga para o exterior.
Como se vê JOSÉ ANTÔNIO PALINHOS é pessoa de confiança de DAMASO e, aparentemente, pela riqueza que parece ter e pelo teor das conversas que mantém com este e com seu irmão ANTÔNIO PALINHOS, aufere altos lucros da atividade ilícita, sendo um de seus financiadores.’
De todo o exposto, ao contrário do que aduz o impetrante, restou concretamente demonstrada a prática do crime, com indícios fortes e suficientes de autoria. Assim, presentes os requisitos objetivos para a decretação da custódia cautelar nos termos do art. 312 do CPP.
Em relação à necessidade da prisão, para a garantia da ordem pública, o il. Magistrado de 1ª Instância a justificou na magnitude do caso e, ainda, no envolvimento de pessoas influentes e possuidoras de notável poderio econômico, a ponto de criar embaraços à instrução do feito, sob os seguintes fundamentos:
‘Ressalte-se ainda que, com relação aos denunciados ANTÔNIO DOS SANTOS DAMASO, JOSÉ ANTÔNIO DE PALINHOS JORGE PEREIRA, ANTÔNIO PALINHOS JORGE PEREIRA, LUIZ MANUEL NETO CHAGAS, JORGE MANUEL ROSA MONTEIRO E MANOEL HORÁCIO KLEIMAN, todos de nacionalidade portuguesa, exceto o último, de nacionalidade Argentina, acentua-se a necessidade da decretação da medida cautelar para assegurar a aplicação da lei penal, ante a possibilidade de os mesmos fugirem em regresso a seus países de origem.
Não se trata, no caso, o referido temor de fuga de mera suposição, estando alicerçado em uma base empírica, qual seja, o freqüente trânsito realizado pelos acusados entre o Brasil e seus países de origem, conforme se verificou durante as apurações. Assim, mostra-se bastante claro que, caso em
liberdade, os denunciados, na primeira oportunidade que tiverem, certamente retornarão aos referidos países, onde possuem uma vida já estruturada’. (fl.63).
É sabido que tais circunstâncias não ensejariam, por si só, a custódia cautelar ou a sua manutenção.
Entretanto, no caso em análise, houve a apreensão de uma quantidade considerável de cocaína, 1,6 t (uma tonelada e 600 quilos), droga camuflada no interior de cortes de carne destinada à exportação. Está sendo apurada a participação de cidadãos estrangeiros que atuavam comercialmente no Brasil,
adquirindo fazendas e empresas, auxiliados por profissionais do ramo, no caso, supostamente com o auxilio do paciente.
Circunstâncias que, considerando a magnitude da empreitada criminosa, os valores envolvidos e os fortes indícios da participação do paciente, bem como a necessidade de se garantir a ordem pública e por conveniência da instrução criminal, autorizam a custódia cautelar. Mesmo porque, embora o paciente afirme ter profissão lícita, como bem aduz o Ministério Público em seu parecer, ‘o paciente
é de fato o proprietário de diversas empresas (de fachada), nas quais utiliza o nome de SANDRA TOLPIAKOW, sua ex-mulher, como sócia e testa-de-ferro em seus quadros sociais...’
Quanto ao alegado excesso de prazo na manutenção do paciente na prisão, não vislumbro a ilegalidade apontada na inicial, considerando que o prazo fixado para o término da instrução criminal, quando há réu preso, está fundamentado em construção jurisprudencial, não sendo sua contagem puramente aritmética, ou seja, absoluta, mas analisada com fulcro nos princípios da razoabilidade, proporcionalidade e a necessidade de se aferir a complexidade da causa, pelo número de acusados, de crimes praticados e da produção das provas requeridas, sobretudo a prova testemunhal.
Conforme se verifica das informações de fls. 19/198, os autos encontram-se aguardando cumprimento e devolução de Cartas Precatórias, expedidas para inquirição de testemunhas arroladas pelas defesas dos acusados, não havendo que se falar em demora da instrução criminal, que se encontra em estado adiantado.
Além do mais, o paciente foi denunciado por crimes cuja complexidade em razão do número de pessoas envolvidas e de condutas executadas em diversas fases e em vários Estados demanda maior tempo, permitindo extrapolação de prazos, desde que atendido o princípio da razoabilidade, como acima exposto, e desde que verificados os requisitos do art. 312 do CPP. O que se verifica in casu.” (Apenso - fls. 236-238).
O Superior Tribunal de Justiça também denegou a ordem, no HC nº 55.209/GO, sustentando que “os indícios apontam o paciente como autor dos fatos, não só como participante da organização criminosa, mas como um dos líderes, com função específica nas atividades ilícitas pontadas.” (fl. 25).
Conforme se observa, neste habeas corpus, discute-se:
a) falta de fundamentação no decreto de prisão preventiva;e
b) excesso de prazo na instrução criminal.
Quanto à alegação de falta de fundamentação no decreto prisional (item “a” acima), observo que o decreto de custódia provisória atendeu ao disposto nos arts. 41 e 43 do CPP. A prisão preventiva também indicou, de modo expresso, os seguintes fundamentos para a decretação da prisão cautelar, nos termos do art. 312 do CPP: i) garantia da ordem pública; e ii) garantia da aplicação da lei penal.
O Juízo Federal da 11ª Vara da Seção Judiciária do Estado de Goiás, ao receber a denúncia, por sua vez, converteu a prisão em flagrante em prisão preventiva, adotando os seguintes fundamentos em sua decisão:
“Como se não bastassem as razões trazidas pela Procuradoria da República, que servem per si de fundamento para o decreto cautelar, tem-se que a conversão é necessária também por outro lastro.
Trata-se do fundamento referente à credibilidade das instituições e do alto grau de probabilidade na ocultação de provas.
Com efeito, causaria sério gravame à credibilidade das instituições públicas permitir a liberdade dos acusados diante dos fortes indícios de presença de organização criminosa especializada em tráfico internacional de drogas.
Os elementos indiciários até aqui produzidos apontam a existência de verdadeira empresa criminosa, com ramificação em vários Estados brasileiros e participação dos réus, cada um deles, a tempo e modo, auxiliando a prática de crimes.
Em trabalho custoso e demorado, a Polícia Federal efetuou diversas diligências na apuração das atividades, tudo indica, criminosas desenvolvidas pelos membros da quadrilha. A extensa e complexa investigação objetivou descobrir rede de tráfico de entorpecentes instalada no Brasil para remeter substâncias entorpecentes para países da Europa, tais como Portugal e Espanha.
Aparentemente, a quadrilha agia em perfeita divisão de tarefas, sendo que as atividades de cada investigado são precedidas de decisões tomadas pelos líderes, entre os quais Antônio dos Santos Damaso, José Antonio Palinhos [ora paciente] e Jorge Manuel Rosa Monteiro.
A investigação indicou ainda na estruturação da quadrilha um escalonamento entre seus integrantes, sendo que nem todos se conhecem, embora ajam em conjunto objetivando a mesma finalidade. Enquanto uns cuidavam da aquisição e transporte da substância entorpecente, outros emprestavam seu auxílio de forma indireta, mas sempre cientes de que estão colaborando com a prática criminosa.
Entre os artifícios utilizados, sinaliza a investigação que o grupo se valia do transporte da droga escondida em containers de carne congelada. Tais containers, por transportarem alimentos, dificilmente são abertos para fiscalização depois de lacrados, pois, por força de rígidos tratados internacionais, podem ter o seu conteúdo recusado para comercialização nos países destinatários, o que geraria para a União o dever de indenizar o vendedor. Daí a deflagração da chamada
‘Operação Caravelas’, que resultou na apreensão de expressiva quantidade de entorpecentes (1,6 t).
Aliado a isso, é preciso considerar o poder econômico dos acusados, como evidenciam os valiosos bens seqüestrados (automóveis de luxo, lancha, apartamentos, fazendas, moedas estrangeiras em grande quantidade, entre outros), o que torna provável o uso de suas posses para quebrantar a ordem pública, comprometer a eficácia do processo, dificultar a instrução criminal ou voltar a
delinqüir.
(...)
Mostra-se necessária e útil a prisão cautelar dos acusados, remarque-se, com o fim de estancar a ação criminosa, tudo indica, por eles reiteradamente praticada, e, de conseguinte, proteger o meio social das conseqüências danosas que tais condutas provocam.
Assim, é preciso considerar a forte sinalização de que a liberdade dos denunciados continuará a ofender a ordem pública mediante a prática reiterada dos crimes em apreço, não custa lembrar, um deles equiparado a hediondo (art. 2º da Lei 8.072/1990).
Ainda no que tange ao risco de ocultação de provas, o fato é que, numa atividade tão organizada e complexa, a extensão das infrações penais nunca é plenamente conhecida, existindo, muito provavelmente, outros elementos de convicção a serem descobertos, o que restaria impedido, tudo indica, com a soltura dos acusados.
Diante do exposto:
(...)
VIII – converto o flagrante em prisão preventiva com relação aos acusados Antônio dos Santos Damaso, José Antônio de Palinhos Jorge Pereira [ora paciente], Carlos Roberto da Rocha e Márcio Junqueira de Miranda. Expeça-se mandado de prisão, salvo em relação a Vânia Oliveira Dias e Estilaque Oliveira Reias, porque já decretada a preventiva” (fls. 110-114).
Com relação ao tema da garantia da ordem pública, faço menção à manifestação já conhecida desta Segunda Turma em meu voto proferido no HC nº 88.537/BA acerca da conformação jurisprudencial do requisito dessa garantia. Naquela assentada, pude asseverar que o referido requisito legal envolve, em linhas gerais e sem qualquer pretensão de exaurir todas as possibilidades normativas de sua aplicação judicial, as seguintes circunstâncias principais:
i) a necessidade de resguardar a integridade física do paciente;
ii) o objetivo de impedir a reiteração das práticas criminosas, desde que lastreado em elementos concretos expostos fundamentadamente no decreto de custódia cautelar; e
iii) o propósito de assegurar a credibilidade das instituições públicas, em especial do Poder Judiciário, no sentido da adoção tempestiva de medidas adequadas e eficazes, desde que devidamente fundamentadas, com indicação de elementos concretos, quanto à visibilidade e transparência da implementação de políticas públicas de persecução criminal.
Da leitura do decreto prisional, são inúmeros os elementos e fatos concretos que dão ensejo à regularidade da prisão preventiva. Apenas para fins exemplificativos arrolo os seguintes: a função de “direção” desempenhada pelo paciente na organização (o paciente é considerado o “2º homem dentro da organização”); a ramificação das atividades criminosas em diversas unidades da federação; e a alta probabilidade de reiteração delituosa considerando-se a potencialidade da utilização do meio sistematicamente empregado pela quadrilha, a saber, o uso de artifícios para camuflar o transporte de entorpecentes no interior de cortes de carne destinada à exportação.
Entendo, portanto, que há razões bastantes para a custódia preventiva, tanto pela garantia da ordem pública quanto pela aplicação da lei penal, as quais se revelam, no caso concreto, intimamente vinculadas.
Quanto à alegação de excesso de prazo (item “b” acima), o Supremo Tribunal Federal tem deferido a ordem de habeas corpus somente em hipóteses excepcionais, nas quais a mora processual:
i) seja decorrência exclusiva de diligências suscitadas pela atuação da acusação (cf.: HC no 85.400/PE, Rel. Min. Eros Grau, 1a Turma, unânime, DJ de 11.03.2005; e HC no 89.196/BA, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, 1a Turma, maioria, julgado em 03.10.2006);
ii) resulte da inércia do próprio aparato judicial em atendimento ao princípio da razoável duração do processo, nos termos do art. 5o, LXXVIII (cf.: HC no 85.237/DF, Pleno, unânime, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 29.04.2005; HC no 85.068/RJ, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 1a Turma, unânime, DJ 03.06.2005; HC no 86.346/SP, Rel. Min. Joaquim Barbosa, 2a Turma, unânime, julgado em 18.04.2006; HC no 87.910/SP, Rel. Min. Eros Grau, decisão monocrática, DJ de 25.04.2006; HC no
86.850/PA, Rel. Min. Joaquim Barbosa, 2a Turma, unânime, julgado em 16.05.2006; e HC no 87.164/RJ, de minha relatoria, 2a Turma, unânime, DJ de 29.09.2006); e, por fim,
iii) seja incompatível com o princípio da razoabilidade (cf.: HC no 84.931/CE, Rel. Min. Cezar Peluso, 1a Turma, unânime, DJ de 16.12.2005), ou, quando o excesso de prazo seja gritante (cf.: HC no 81.149/RJ, Rel. Min. Ilmar Galvão, 1a Turma, unânime, DJ de 05.04.2002; RHC no 83.177/PI, Rel. Min. Nelson Jobim, 2a Turma, unânime, DJ de 19.03.2004; HC no 84.095/GO, Rel. Min. Joaquim Barbosa, 2a Turma, unânime, DJ de 16.12.2005; e HC no 87.913/PI, Rel. Min. Cármen Lúcia, 1a Turma, unânime, julgado em 05.09.2006).
Ademais, esta Corte tem o entendimento de que a defesa não poderá argüir excesso de prazo quando ela própria der causa a demora no término da instrução criminal. Nesse sentido, vale destacar os seguintes precedentes: HC nº 86.947/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, decisão monocrática, DJ de 26.10.2005; HC nº 86.618/MT, 2ª Turma, unânime, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ de 28.10.2005; HC nº 85.298/SP, 1ª Turma, maioria, Rel. Min. Marco Aurélio, Rel. p/ acórdão Min. Carlos Britto, DJ de 04.11.2005; HC nº 86.789/SP, de minha relatoria, 2ª Turma, unânime, DJ de 24.03.2006; HC nº 88.229/SE, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, 1ª Turma, maioria, julgado em 10.10.2006; e HC nº 88.905/GO, de minha relatoria, 2ª Turma, unânime, DJ de 13.10.2006. No presente caso, há indícios de que a própria defesa deu causa ao excesso de prazo, verbis:
“Anoto, outrossim, que os acusados têm impetrado inúmeras ordens de habeas corpus em diversas instâncias judiciais, e, não raro, simultaneamente a incontáveis pedidos de revogação de prisão preventiva, com argumentos idênticos e sem fatos novos que os justifiquem, o que resulta em embaraço à marcha processual. Tal reiteração de pleitos, por certo, também deve ser levada à conta das causas que estão a obstar uma maior celeridade na tramitação da ação penal sob foco, sujeita a
quatro instâncias judiciais, inclusive na via estreita do writ.” (fl. 76).
Outrossim, verifico a existência de elementos que sinalizam a complexidade da causa. A exordial acusatória (Apenso 1, fls. 46-66) foi oferecida contra 12 denunciados, pela suposta prática de tráfico internacional de entorpecentes cometida em associação. Considerando o caráter complexo da instrução, creio ser possível admitir, em principio, a excepcional prorrogação de mais de 81 dias para o término da instrução criminal.
A jurisprudência deste Tribunal, para o caso de processos complexos, reconhece a possibilidade de dilação do prazo da instrução processual, sem que a prisão do envolvido configure inequívoco constrangimento ilegal. Nesse sentido, vale destacar os seguintes precedentes da Corte: HC nº 71.610/DF, Pleno, unânime, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 30.03.2001; HC nº 82.138/SC, 2ª Turma, unânime, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ de 14.11.2002; HC nº 81.905/PE, 1ª Turma, maioria, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ de 16.05.2003; HC nº 85.679/PE, 1ª Turma, maioria, Rel. Min. Carlos Britto, DJ de 31.03.2006; HC nº 86.577/ES, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, 1ª Turma, maioria, julgado em 12.09.2006; e HC nº 88.905/GO, de minha relatoria, 2ª Turma, unânime, DJ de 13.10.2006.
Neste caso, considerada a contribuição da defesa para a mora processual, assim como verificada a complexidade da causa, não vislumbro patente situação de constrangimento ilegal apta a ensejar o deferimento da ordem.
Nesses termos, meu voto é pelo indeferimento deste habeas corpus. Entretanto, considerando a necessidade de razoável duração do processo no âmbito judicial e os efeitos prejudiciais que podem ser causados ao paciente na esfera penal, determino que esta decisão seja comunicada ao Juízo da 11ª Vara Federal da Seção Judiciária do Estado de Goiás, com a maior brevidade possível, a fim de que a Ação Penal nº 2005.35.00.018057-7 seja apreciada e julgada nos termos do art. 5º, LXXVIII, da CF.