Não é por alguém leu todos os livros de Nilton que se transformará, assim de repente, em um Newton. Não é por que você Leu Karl Max que você vai ser um Karl Max. Não é por que você leu quase tudo sobre engenharia que você vai se transformar em engenheiro.
E, por fim, não é por que você leu o Código Penal e a Constituição, mesmo que por milhares de vezes, que você será um especialista em direito.
O que estamos assistindo hoje chega a ser piada. A calhordice atingiu ares de sofisticação a ponto de vermos gente sem formação jurídica alguma tentando ensinar direito, de qualquer de suas variações, agindo como se fossem a excelência do direito, qualquer que seja ele, e só por que alegaram leitura, para quem, como diz Eros Grau em seu estupendo texto ( Pois não me cansarei de reiterar que a interpretação da Constituição e das leis não é ciência, mas prudência – o saber prático, a phrónesis a que se refere Aristóteles. ) exerce o direito e a função de juiz em sua plenitude.
Informação, como disse, é uma questão de escolha pessoal e intransferível. Mas há que se separar a informação fajuta da verdadeira. Segue o primoroso texto de Eros Grau publicado no Estadão.
ANÁLISE: Projeto de abuso de autoridade coloca em risco independência dos agentes públicos
O velho Santo Tomás de Aquino ensina que, quando julga, o juiz deve formar sua opinião não pelo que sabe como pessoa privada, mas pelo que vem ao seu conhecimento como pessoa pública, segundo os dados de cada processo.
O Projeto de Lei do Senado número 280/16 define “crimes de abuso de autoridade, cometidos por membro de Poder”, referindo – entre os seus sujeitos ativos – os membros do Poder Judiciário e do Ministério Público.
Não vou me deter na análise de seus preceitos. Permitam-me que, após a sua atenta leitura, eu reaja simplesmente como uma pessoa prudente.
Pois não me cansarei de reiterar que a interpretação da Constituição e das leis não é ciência, mas prudência – o saber prático, a phrónesis a que se refere Aristóteles. O homem prudente é aquele capaz de deliberar corretamente sobre o que é bom e conveniente para o homem. A prudência não é ciência nem arte, porém virtude capaz de discernir o que é bom ou mau para um ser humano. É razão intuitiva que não discerne o exato, porém o correto. Por isso mesmo os juízes praticam a juris prudentia, não uma juris scientia.
A problematização dos textos normativos não se dá no campo da ciência. Opera-se no âmbito da prudência. Na ciência, o desafio de no seu campo existirem questões para as quais ela (a ciência) não é capaz de dar respostas. Na prudência, a existência de múltiplas soluções corretas para a mesma questão.
Dá-se na interpretação de textos normativos algo análogo ao que se passa na interpretação musical. Não há uma única interpretação correta (exata) da Sexta Sinfonia de Beethoven: a Pastoral regida por Toscanini, com a Sinfônica de Milão, é diferente da Pastoral regida por von Karajan, com a Filarmônica de Berlim. Não obstante uma seja mais derramada, a outra longilínea, as duas são autênticas, corretas.
Daí a inexistência de uma única resposta correta para todos os casos jurídicos – ainda que os juízes estejam permanentemente vinculados pelo sistema jurídico. Essa resposta verdadeira (única correta) não existe. A alternativa verdadeiro/falso é estranha ao Direito.
O projeto de lei do Senado ignora que a moldura da norma jurídica contempla, em cada caso, para uma mesma questão, inúmeras soluções corretas. Enseja a configuração de divergências na interpretação das leis e na ponderação de fatos e atos como expressão de abuso de autoridade. Coloca em risco a independência funcional de todos os agentes públicos, sem exceção. Finda por limitar, restringir a ação do Ministério Público e do Poder Judiciário.
A tipificação da hermenêutica como crime aterroriza. A confusão entre interpretação das leis e dos fatos e abuso de autoridade me estarrece.
Na minha idade costumo recorrer a Santo Tomás de Aquino, com quem muito aprendi, na leitura da Suma Teológica. Lá, onde o velho Tomás ensina que, quando julga, o juiz deve formar sua opinião não pelo que sabe como pessoa privada, mas pelo que vem ao seu conhecimento como pessoa pública, segundo os dados de cada processo.
É mesmo assim! Soa em meus ouvidos aqui, agora – noite e dia – o que, no seu tempo, o velho Cícero gritou: o tempora! o mores!
*É ADVOGADO E PROFESSOR TITULAR APOSENTADO DA FACULDADE DE DIREITO DA USP E MINISTRO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
* EROS GRAU NÃO É UM JORNALISTAZINHO TIPO BEM-SUCEDIDO.